Há alguns anos, eu estava trabalhando na mesa da cozinha dos meus pais, respondendo a e-mails enquanto minha mãe moía, lavava ou mexia algo. Eu estava absorta na minha tarefa e apenas meio presente quando fui chamada de volta pela minha mãe perguntando por que eu estava sorrindo. E foi assim que descobri que, quando estou escrevendo um e-mail amigável, não são apenas minhas palavras que se ajustam ao contexto – é todo o meu corpo (incluindo o rosto). Pode não haver uma pessoa para interagir, mas poderia muito bem haver. A cordialidade, ou gentileza, nesse caso, não é “apenas um pensamento” manifestando-se como palavras desencarnadas na página, e estudo após estudo mostrou efeitos semelhantes.
Há uma metáfora bem conhecida sobre peixes que não sabem o que é a água, cujas origens remontam às brumas do tempo. Somos da mesma forma com os corpos, então tendemos a deixá-los fora da equação. Se pensamos sobre corpos (especialmente em inglês, embora a conversa sobre linguagem seja longa e fascinante), muitas vezes é como contêineres – uma caixa inerte na qual nossos “eus” (de alguma forma virtuais) residem. Essa tendência não melhorou com o advento da computação, software e aprendizado de máquina, que trouxeram uma série de metáforas problemáticas sobre como funcionamos.
Nessa metáfora, o cérebro é um computador mestre que continuamente coleta e processa dados do mundo ao nosso redor e, em seguida, toma decisões com base nesses dados. Quando as coisas estão indo bem, as decisões são baseadas em avaliações racionais. Quando não, emoções incômodas interferem, obscurecendo nossos processos de julgamento claros, e precisam ser eliminadas para que a clareza possa ser alcançada novamente. As emoções, é claro, quase sempre são descritas em termos mais “físicos” (neurotransmissores podem ser mencionados, por exemplo). Ao mesmo tempo, os processos “superiores” lógicos (neste tipo de relato) permanecem o mais intocados possível por nossa parte corpórea.
Nem preciso dizer que a maioria da neurociência contemporânea está muito distante dessa imagem “virtual”. A combinação de nossa corporeidade com a natureza emergente de nossa inteligência e consciência (o que significa que nossas mentes não são “uma coisa”, mas o resultado de múltiplas interações sem serem reduzíveis aos componentes dessas interações) é especialmente explorada em duas vertentes neurocientíficas não relacionadas. Podemos chamar uma de incorporada e a outra de preditiva.
Abordagens incorporadas enfatizam o papel desempenhado por nossos ambientes materiais e sociais, ações e corpos em nossa cognição. O trabalho mais típico é aquele que introduziu este campo a um público mais amplo: “The Embodied Mind“. Abordagens preditivas, por outro lado, como as representadas por Andy Clark, invertem as suposições típicas sobre o “fluxo” da percepção: não olhamos para o mundo como uma câmera neutra que registra tudo e depois processa os dados que coletamos. Em vez disso, temos uma imagem antecipada do mundo e, em seguida, tiramos algumas fotos rápidas com uma Polaroid para confirmá-la. Somente se as fotos não corresponderem às nossas expectativas é que pegaremos a câmera de vídeo muito mais cara e começaremos a gravar de forma mais extensa, aberta e dispendiosa.
Essas abordagens compartilham dois elementos que quero enfatizar especialmente: nosso encontro ativo com o mundo e nossa relação com a novidade. Ambos são muito relevantes do ponto de vista da prática e da ciência da complexidade. O primeiro ponto enfatiza que não deixamos o mundo nos impressionar passivamente, mas constantemente, na maioria das vezes inconscientemente, “selecionamos” o que vemos do mundo. Também tomamos pequenas ações que nos permitem testar as águas e ajustar nossas percepções e ações de acordo. O segundo ponto destaca que a novidade não é algo que simplesmente encontramos e processamos de forma neutra. Nossas expectativas e experiências anteriores moldam como percebemos e respondemos ao novo, influenciando nossa capacidade de adaptação e aprendizado.
Em resumo, compreender a complexidade da mente humana requer uma abordagem que reconheça a interconexão dinâmica entre mente, corpo e mundo, indo além de metáforas simplistas que separam o pensamento racional das experiências corporais e ambientais.
Voltei a pensar nessas questões porque fui instigada pelo nosso próximo Retreat, que acontecerá no Brasil em Junho. O tema é “Mente, Corpo, Mundo“. Embora parte do propósito de um Retreat seja permitir que o processo o inspire a decidir no que deseja trabalhar nesse espaço, devo admitir que já tenho algumas ideias em mente. Mal posso esperar para deixar o formato do Retreat me conduzir a essas reflexões.
A Esta publicação foi ilustrada com imagens associadas à dança: a imagem do banner é © The Trustees of the British Museum, e a imagem no texto é uma capa de dança Tsimshian, parte da coleção do The Met.
*este artigo foi traduzido pela equipe The Cynefin Company Brazil
fonte: https://thecynefin.co/mind-body-world-in-out/