Trilhas

O Fim das Squads – Parte 1: A Origem dos Times Multifuncionais na Agilidade

A origem dos times multifuncionais na agilidade e por que seu conceito precisa ser reavaliado no contexto atual.

Times multifuncionais são, hoje, quase sinônimo de agilidade. A ideia de reunir todas as competências necessárias em uma mesma célula de trabalho é adotada como um princípio incontestável, algo que infelizmente vem se tornando cada vez mais comum em uma comunidade que nasceu clamando por melhoria contínua.

Este artigo busca voltar às raízes: quando e por que os times multifuncionais surgiram? Quais eram suas premissas originais? Elas ainda fazem sentido em um mundo onde a inteligência artificial se torna realidade?

Lean e o combate à fragmentação funcional

A inspiração para o conceito de times multifuncionais remonta ao sistema de produção da Toyota, formulado no Japão pós-guerra. Na época, a empresa precisava produzir com qualidade, baixo custo e alta adaptabilidade – tudo com equipes pequenas e recursos escassos. A solução foi formar células de trabalho com operadores multitarefa e colaborativos, capazes de lidar com várias etapas do processo.

Essa multifuncionalidade não era uma escolha estética ou moral, mas uma resposta pragmática à escassez e à necessidade de fluidez operacional, reduzindo o desperdício de tempo, movimentação e espera.

Métodos ágeis e a transição para o desenvolvimento de software

Com a consolidação dos métodos iterativos nos anos 1990, principalmente Scrum e XP (Extreme Programming), a ideia de time multifuncional foi formalizada no desenvolvimento de software. A fragmentação das funções – comum no chamado modelo Waterfall – era vista como um dos grandes vilões da produtividade, ainda mais com o crescente número de especialidades dentro da disciplina.

Scrum propunha, então, um time pequeno, coeso e capaz de entregar valor sem depender de outras áreas: um time que continha todas as especialidades necessárias para entregar um incremento de software a cada ciclo de até quatro semanas.

“Em Scrum, as equipes de desenvolvimento são pequenas, cada uma contendo desenvolvedores, documentadores e pessoal de controle de qualidade.” – Schwaber & Sutherland, OOPSLA 1995

Essa descrição mostra que o conceito de equipes pequenas, com todas as competências necessárias para entregar incrementos de produto de forma autônoma, já estava presente no núcleo do Scrum antes mesmo da criação do Manifesto Ágil.

O Manifesto Ágil e a consolidação do conceito

Embora o Manifesto Ágil (2001) não cite diretamente o termo “multifuncional”, o princípio da auto-organização pressupõe que um time autônomo precisa ter, internamente, todas as competências necessárias para resolver seus próprios problemas.

“As melhores arquiteturas, requisitos e designs emergem de times auto-organizados.” – Manifesto Ágil, Princípios

A partir daí, o modelo se consolida. Times multifuncionais passam a ser quase um sinônimo de agilidade bem implementada. Estruturas funcionais passam a ser vistas como um sinal de imaturidade ou resistência à mudança.

Produtos ao invés de projetos

Em 2008, esse movimento encontra eco no trabalho de Marty Cagan, que começa a trazer de forma mais intensa a proposta de nos organizarmos em torno de produtos, e não de projetos. Por mais que isso já existisse na essência dos métodos ágeis, Cagan conecta o foco no produto à estrutura de times proposta por eles, apontando que um time de produto é multifuncional por essência, composto por pessoas com as competências necessárias para resolver problemas reais de usuários de forma autônoma.

“Times de produto são compostas por um product manager, um product designer e engenheiros (especializados em diferentes disciplinas) – todos focados não em entregar funcionalidades, mas em alcançar resultados.” – Marty Cagan, Inspired  

A era dos Squads e o branding da estrutura

A palavra Squad passa a ser utilizada através do (não-)modelo do Spotify, popularizado em 2012 com os vídeos de Henrik Kniberg, um dos consultores de agilidade que trabalhava lá na época. Cada squad seria um time multifuncional com autonomia sobre uma parte do produto, sentado junto, com rituais e governança próprios.

“Um Squad é um pequeno time multifuncional, com menos de oito pessoas, totalmente responsável por uma parte do produto.” – Scaling Agile @ Spotify

O sucesso do modelo transformou squad em uma buzzword. Mesmo empresas que mantinham estruturas funcionais começaram a adotar o termo. Na prática, o (não-)modelo Spotify deveria ser mais uma metáfora do que um blueprint organizacional – e seus próprios criadores alertaram contra a aplicação literal, algo maliciosamente ignorado pelas grandes consultorias que “squadificaram” organizações pelo mundo.

Topologia de Times

Mais recentemente, o trabalho de Matthew Skelton e Manuel Pais com o livro Team Topologies (2019) trouxe uma nova lente para o debate. Em vez de advogar por times “super multifuncionais”, os autores propõem uma taxonomia clara de diferentes tipos de times e modos de interação, permitindo que as organizações organizem suas equipes com mais intencionalidade – respeitando que a natureza de alguns tipos de trabalho pode não ser beneficiada, e até ser prejudicada, por essa estrutura.

“A multifuncionalidade é importante, mas precisa ser equilibrada com a carga cognitiva do time.” – Skelton & Pais, Team Topologies  

As premissas ainda fazem sentido?

A ideia original era clara: em um ambiente incerto e dinâmico, ter todas as competências no mesmo time reduzia barreiras, aumentava a velocidade e criava resiliência.

Mas, em 2025, algumas condições importantes mudaram:

  • Já é evidente que, em muitos lugares, houve um abuso do conceito, que passou a ser aplicado de forma deliberada em todos os contextos.
  • A inteligência artificial (por enquanto, principalmente a generativa) expande radicalmente o que indivíduos são capazes de fazer por conta própria.
  • Em times grandes e abundantes em especialistas, torna-se limitado o interesse em explorar IA como alavanca de produtividade, criatividade e experimentação.
  • A coordenação entre funções, mesmo dentro de tribos e squads, voltou a crescer, tornando o modelo mais pesado do que o imaginado originalmente – e recriando novos silos organizacionais.

Em outras palavras: o contexto que justificava e impulsionava a multifuncionalidade está mudando. E quando o contexto muda, as estruturas precisam ser reavaliadas, sob risco de se tornarem rituais vazios ou, pior, barreiras para novas possibilidades.

O Agile de hoje não pode se tornar o Waterfall de ontem.

Conclusão

A multifuncionalidade foi uma revolução organizacional. Inspirada no chão de fábrica japonês, adaptada para o software, consolidada no Manifesto Ágil e reformulada culturalmente pelos squads.

Mas, como toda estrutura, ela nasce para resolver um problema, e pode deixar de fazer sentido quando o contexto muda.

No próximo artigo desta série, exploro em mais detalhes a chegada da inteligência artificial generativa e seu potencial impacto nas estruturas organizacionais de hoje.

Leia agora a Parte 2: O potencial impacto da IA nas estruturas organizacionais.

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