Depois de termos explorado a construção do portfólio de Safe-To-Fail probes e expormos os limites do modelo tradicional com squads diante das possibilidades abertas pela IA, é hora de mergulhar nos detalhes da estrutura que melhor conseguiu explorar esse novo potencial: o modelo de pares (ou trios) em rede.
First Principles
Queríamos que, ao menos, uma das sondagens do nosso portfólio seguisse fielmente o princípio dos First Principles – abordagem que consiste em decompor um desafio até seus fundamentos mais elementares e verdadeiros, para então reconstruí-lo a partir desses blocos essenciais, sem depender de analogias, padrões ou convenções anteriores.
Embora sua origem remonte a Aristóteles, o conceito ganhou notoriedade nas últimas décadas ao ser popularizado por nomes como Elon Musk e Steve Jobs. Na sua essência, ele desafia a lógica incremental e o uso acrítico de um modelo estabelecido – algo comum em abordagens iterativas. Em contextos complexos, onde grandes mudanças, riscos ou oportunidades estão presentes, simplesmente iterar sobre o passado pode limitar drasticamente nossa capacidade de enxergar o novo.
No ecossistema Cynefin, práticas de decomposição e recombinação nos aproximam, direta ou indiretamente, da aplicação dos First Principles. Foi justamente essa abordagem que nos levou à pergunta fundamental:
“Considerando que, no desenvolvimento de produtos digitais, a IA pode executar todo – ou quase todo – o trabalho, para que precisamos de humanos?”
A partir dessa provocação, partindo literalmente da página em branco, chegamos à estrutura de pares – reconhecendo a necessidade de profissionais com conhecimento técnico adequado para, continuamente, instruir, revisar e/ou organizar o trabalho produzido em colaboração com a IA. As disciplinas de engenharia e design se mostraram as bases mais recorrentes para compor esses pares.
Perceba que adotamos aqui uma estratégia AI+, como mencionado na parte 3 desta série – onde a inteligência artificial é o ponto de partida – enriquecida nesse caso tanto pelo conceito de First Principles quanto pela prática de decomposição e recombinação.

O que são pares?
Nos experimentos que conduzimos, o “par humano” se consolidou como a unidade mínima de criação de valor em contextos mediados por IA. Comumente composto por um engenheiro e um product designer, esse par é capaz de transformar necessidades em soluções, utilizando IA como co-agente criativo e operacional.
Mas aprendemos que a composição, por mais que predominante, não é fixa. Já vimos pares de dois engenheiros, ou de um designer e um especialista em dados, por exemplo. A lógica não está nas disciplinas combinadas em si, mas na complementaridade entre competências, na fluidez da colaboração e na capacidade de acoplar IA ao fluxo de trabalho de forma orgânica.
Quando entram os trios?
Em cenários mais complicados ou até complexos – onde há disputa de prioridades ou baixa visibilidade da disposição das necessidades do cliente, múltiplos stakeholders ou decisões estratégicas que exigem alinhamento de longo prazo – soma-se ao par, ou a um conjunto de pares, um Product Manager. Forma-se então o trio.

Por que em rede?
Porque os pares, em muitos contextos, não operam isoladamente. Eles se conectam em uma rede formal – estruturada por escopo de atuação, à semelhança das antigas “tribos” do (não-)modelo Spotify, mas com uma diferença fundamental: são redes abertas.
Essa abertura permite que pares de redes distintas colaborem rapidamente, sem rituais pesados ou processos de autorização. E, mais importante, essas redes formais reconhecem o valor das redes informais: conexões espontâneas, afinidades naturais, confiança construída em outras interações. O conhecimento que flui por afinidade é tão ou mais valioso do que aquele prescrito pelo organograma.
Essa visão foi profundamente influenciada por uma experiência que tive com a The Cynefin Co., num Exploratory sobre “Complexidade e Redes”, explorando ideias de Dave Snowden e Valdis Krebs. Minhas anotações daquela época me ajudaram a enxergar – e depois experimentar – esse novo desenho organizacional como um sistema vivo, onde estruturas formais e informais coexistem, se entrelaçam e respondem a estímulos intencionais.

E sobre rituais e papéis?
Grande parte da sincronização para a qual os rituais tradicionais foram criados tende a ser resolvida, ou drasticamente reduzida, com o uso de IA. Por isso, é natural imaginar que muitos deles se tornem desnecessários.
Na experiência que compartilho aqui, alguns rituais foram mantidos, especialmente nos níveis de produto ou rede, mas isso mais por transição do que por convicção. Enquanto não encontramos alternativas mais leves e eficazes, mantivemos o mínimo necessário.
Como partimos de First Principles, não tentamos encaixar os rituais existentes à força, nem criamos tabelas “de-para”. Fomos trabalhando junto aos pares para identificar onde existia fricção, onde havia necessidade real de coordenação, e onde a IA já podia resolver sem intervenção humana.
Quanto aos papéis, além dos presentes nos pares ou trios, é natural que novos atores emerjam, sejam para uma atuação com humanos ou IA. Olhando para as estruturas anteriores, é natural pensarmos em papéis para a rede em si, algo como uma “Network Leader” ou “Network Coach” mas muito provavelmente novos e melhores papéis também precisem partir de um exercício com First Principles.
Mas… Mas… Mas…
Lembro dos questionamentos que, com frequência, ouvia nos meus primeiros anos com Scrum, ali por 2003. Cada treinamento ou interação com empresas era recheado de comentários como:
- “Mas… isso não faz sentido algum.”
- “Mas… não há evidência científica que comprove que isso funciona!”
- “Mas… projeto sem controle? Isso vai dar errado.”
- “Mas… times auto-organizados? Isso nunca funcionará.”
- “Mas… vocês querem acabar com os especialistas?”
- “Mas… e a gestão funcional?”
- “Mas… isso não escala.”
- “Mas… isso não serve para grandes empresas.”
Sendo assim, estou certo que essas e outras reações aparecerão em qualquer estrutura que tente desafiar a atualmente estabelecida.
Sinceramente, ainda não sei se a estrutura de pares (ou trios) em rede funcionará na maioria dos contextos. Tampouco tenho certeza de que é a melhor maneira de explorar o potencial da IA – ou se devemos mesmo perseguir isso como objetivo.
Mas, sendo essa a ambição, de uma coisa eu tenho certeza: com as estruturas organizacionais que temos hoje, você não vai conseguir.
Então fica a provocação: por que você ainda não está sondando estruturas organizacionais diferentes?
(a) Não tem tempo ou recursos para isso, ou seja, isso não é prioridade.
(b) Você acredita que IA seja só uma ferramenta, então é só adicioná-la à estrutura atual.
(c) Prefere esperar para ver se o mercado mudará de estrutura mesmo, aí você copia depois.
(d) Não sabe como fazer sondagens e experimentos de forma apropriada à complexidade do tema.
(e) Tem dúvidas se devemos mesmo explorar a IA em todo o seu potencial.
Para (a), (b) e (c): sinto dizer, você está equivocado.
Para (d): nós, da The Cynefin Co. Brazil, podemos ajudar.
Para (e): esse será o tema do próximo – e último – artigo desta série.
Leia agora a Parte 5: Devemos mesmo explorar o máximo potencial da IA?